ANGELA MARIA, A CANTORA DO BRASIL

 

 No início dos anos 70, Elis Regina estrelou um programa na Rede Globo, em que interpretava grandes sucessos e recebia convidados especiais. Um dia, Miéle e Ronaldo Bôscoli (seu então marido), que dirigiam a produção, resolveram lhe fazer uma surpresa. Eles promoveram o seu encontro com a sua cantora favorita e musa inspiradora, que surgiu no palco de surpresa, enquanto ela interpretava “Vida de Bailarina” (Américo Seixas/Chocolate). Tratava-se de Angela Maria!

 A fluminense de Conceição de Macabu, nascida Abelim Maria da Cunha, em 13 de maio de 1929, há exatos 92 anos, numa família tradicional protestante e que dera seus primeiros passos cantando música sacra na Igreja Batista de seu pai e ganhando todos os programas radiofônicos de calouros, superou uma infância difícil, tornando-se uma das melhores, mais importantes e populares personagens do cancioneiro nacional. Dona de uma voz raríssima de mezzo-soprano, com uma extensão assombrosa e um dos mais belos timbres naturais do mundo, foi a maior intérprete de sua geração e a “professora” de outras grandes vozes. Nomes como Gal Costa, Elza Soares, Milton Nascimento, Alcione, Fafá de Belém, Djavan, João Bosco, Agnaldo Timóteo (que foi seu motorista e a quem deu a oportunidade de alcançar o sucesso) e a própria Elis, foram alguns desses alunos.

 Inspiração para muitos, teve, por sua vez, como modelo a fantástica Dalva de Oliveira, que dominou as paradas de sucesso no Brasil, a partir do final da década de 40, quando saiu do Trio de Ouro e iniciou carreira solo. Naqueles dias, Angela Maria era crooner do Dancin’g Avenida, no Rio de Janeiro e cantava boa parte do seu repertório, buscando imitar a sua maneira de cantar. Com o tempo e pela necessidade da construção de uma identidade própria para uma autoafirmação na música, deixou de ser uma “imitadora” para tornar-se uma estrela e a mais emblemática cantora da Era do Rádio.

 Sua estreia em disco aconteceu em 1951, na RCA Victor, quando colocou voz aos sambas “Quando alguém vai embora” e “Sou feliz”, ambas de Cyro Monteiro, que a ajudou com a oportunidade de gravá-las num 78 rotações. Desde então, a sua popularidade não parou de crescer e, em poucos anos, era a mais popular do país, numa época em que a televisão dava seus primeiros passos e o rádio era o principal veículo de comunicação. Em 1954, foi eleita a “Rainha do Rádio”, com votação recorde.


 Os anos 50 marcaram o seu reinado absoluto no cenário musical brasileiro. Nenhum outro cantor ou cantora conseguia colocar mais de seis músicas por ano nas paradas, numa época em que figuravam nomes como Elizeth Cardoso, Maysa, Roberto Luna e outros tantos. Assim como, ninguém conseguia ser contratado, ao mesmo tempo, por rádios concorrentes. Esse caso era único e exclusivo dela, que cantava na Rádio Nacional e na Mayrinck Veiga, simultaneamente. Poucos, além do incrível Francisco Alves, conseguiam a façanha de ter um programa próprio. Angela, por sua vez, tinha dois fixos, um em cada emissora. Futuramente, brilharia na televisão, consagrando-se também nesse veículo de comunicação, sob a direção de Maurício Sherman e outros gênios do meio televisivo. 

 Os sucessos eram recorrentes: “Orgulho” (Waldir Rocha/Nelson Wederckind), “Fósforo Queimado” (Paulo Menezes), “Adeus, Querido” (Lourival Faissal), “Lábios de Mel” (Waldir Rocha), “Nem Eu” (Dorival Caymmi) e tantos outros. Mas, o maior de todos eles foi “Babalu” (Margarita Lecuona), um clássico do repertório afro-cubano, famoso na voz de Yma Sumac, regravado em parceria com pianista Waldir Calmon, em 1958. Por seu destaque na música, foi presença constante no cinema, sobretudo, em produções da Atlântica. No total, participou de 21 filmes, sendo um deles como protagonista: “Rumo a Brasília”, gravado no México, em que contracenou com Antônio Aguillar. Também foi capa das principais revistas da época, como a “Revista do Rádio”, “Radiolandia” e “O Cruzeiro”. 


 O público a idolatrava! Consagrada em todo o país, seu nome transpassou fronteiras e a levou a ter sucesso em boa parte da América Latina e vários países africanos, dentre os quais,Cabo Verde, inspirando a incrível Cesária Évora, com quem cantaria décadas depois. A crítica, porém, tecia comentários ácidos e, muitas vezes, injusto com relação ao seu repertório popular, tachado de cafona. Aliás, essa era a situação de outros ídolos, como Cauby Peixoto e Nelson Gonçalves. Mas, os críticos especializados, sobretudo, Claribalte Passos e Ibrahim Sued, eram unânimes ao ressaltar a qualidade vocal da “Rainha que canta”. Afinal, não era por acaso que maestros do porte de Pixinguinha, Radamés Gnatalli e Lyrio Panicalli a admiravam e respeitavam. Idem, músicos como Baden Powell, Donga e João da Baiana.


 Seu talento era tão grande que chegou a encantar e despertar a admiração de personalidades. Uma delas foi o presidente Getúlio Vargas, que lhe deu o carinhoso apelido de “Sapoti”, em referência à típica fruta do nordeste, que segundo ele seria morena “da sua cor” e doce “como a sua voz”. Algumas outras foram o ditador cubano Fidel Castro, o presidente mexicano Alberto Sanches, a cantora francesa Edith Piaf (que se tornou sua fã), a atriz alemã Marlene Dietrich, o cantor Neil Sedaka e o ícone do jazz Louis Armstrong, com quem cantou no Ginásio do Ibirapuera, em 1957. Com Carmen Miranda, a grande estrela brasileira e mundial do cinema, firmou uma relação de grande amizade. Além de Getúlio, Angela teve proximidade com outros presidentes, inclusive, Juscelino Kubitscheck e Jânio Quadros, para os quais fez campanha, e por isso, recebeu o epíteto de “cantora dos presidentes”.

 Fiel ao seu estilo romântico, expresso em sambas-canções, boleros, valsas, tangos, mas também eclética, transitando pelo chá-chá-chá, foxes e marchinhas carnavalescas, resistiu ilesa a movimentos como a Bossa Nova, a Jovem Guarda e a Tropicália. Tanto é que, de volta ao Brasil, nos anos 60, após longa temporada em Portugal - onde era chamada de “prima-dona da canção brasileira” e cantou com Amália Rodrigues, a diva dos fados -, em plena ditadura militar e com o “iê-iê-iê” de Roberto e Erasmo Carlos ditando moda, emplacou sucessos como “Cinderela” (Adelino Moreira) e “Falhaste Coração” (Cuco Sánchez/Luis Carlos Gouveia).

 Também chegou a gravar os compositores das novas gerações da MPB, como Chico Buarque (“Gente Humilde”, sua composição em parceria com Vinicius de Moraes, “Valsinha” e “Atrás da Porta”), Caetano Veloso (Os Argonautas), Edu Lobo (“Pra dizer adeus”, sua parceria com Torquato Neto), Taiguara (“Viola Enluarada”) e Nelson Motta (“Saveiros”). Tudo isso, sem se esquecer de clássicos como “Último Desejo” (Noel Rosa), “Carinhoso” (Pixinguinha/João de Barro) e “Ave Maria do Morro” (Herivelto Martins). Seu repertório também tinha espaço para as Ave Marias de Gounod/Bach, de Schubert, de Somma e de Abranches, que gravou com os Canarinhos de Petrópolis, a pedido de Dom Hélder Câmara. Aos sambas tradicionais dos morros cariocas, dedicou um álbum inteiro, “O Samba vem lá de cima”, de 1967, pelo selo Copacabana. Foi homenageada por Ney Matogrosso com o álbum “Estava Escrito”, de 1994. Moraes Moreira, em parceria com Fred Góes e Paulo Lemingli, a imortalizou com “Sempre Angela”. De Ary Barroso e Vinicius de Moraes, ganhou um compacto inteiro, com composições de ambos exclusivas para ela. Mas, o seu compositor favorito foi Adelino Moreira, que lhe deu os maiores êxitos de sua extensa discografia, que incluiu, até, duetos com Nana Caymmi, Emílio Santiago, Fagner, Martinho da Vila, Pery Ribeiro, Simone, Roberto Carlos e a dupla sertaneja Zezé di Camargo & Luciano. 

 Apesar da carreira vitoriosa, a vida pessoal da “eterna cantora do Brasil” - como foi definida por seu biógrafo Rodrigo Faour -, foi muito conturbada e marcada por vários relacionamentos abusivos, que incluíam extorsões e agressões físicas. Falsas amizades e empresários inescrupulosos também a exploraram. Pesavam ainda as insatisfações por gestações frustradas, devido à problemas uterinos, que a impediam de realizar o sonho da maternidade. Mas, a grande virada viria na década de 70, quando conheceu o amor verdadeiro, através do jovem Daniel D’Angelo, com quem viveu até o fim da vida. Os filhos adotivos conseguiram realizar o seu sonho de ser mãe. No mesmo espaço-tempo, já na era dos Mutantes, do Clube de Esquina e do samba-jóia, fez o povo cantar “A Noite e a despedida” (Beto Scala), “Vá, mas volte” (Wando), “Tango para Teresa” e “Moça Bonita”, ambas de Jair Amorim e Evaldo Gouveia. Na pesquisa do Ibope de 1976, encomendada pela Rede Globo, foi apontada como a “cantora mais popular do Brasil”, desbancado figuras como Elis Regina, Clara Nunes e Maria Bethânia, três dos maiores cartazes daqueles dias.

Ela e Cauby Peixoto

 Mulher à frente de seu tempo em vários aspectos, venceu obstáculos e quebrou paradigmas. Conseguiu dobrar a resistência da família com relação à carreira artística, saindo de casa para perseguir o seu sonho. Foi a recordista mundial em gravações musicais, reconhecida pelo Guiness Book. E também, a maior recordista do sexo feminino em vendagem de discos na história do país, com 60 milhões de exemplares vendidos. Como se isso não bastasse, foi uma das primeiras a assumir publicamente um relacionamento com alguém mais jovem, o que demonstra seu empoderamento, não apenas como artista, mas como mulher. 

  Imitada, mas nunca igualada, a fenomenal cantora, premiada nacional e internacionalmente, e que fez os soldados pararem de lutar em plena guerra pela independência, em Angola, deixou uma marca indelével nos ouvidos e na alma do povo brasileiro. Sua voz está para o Brasil, assim como a de Ella Fitzgerald está para os Estados Unidos. O seu canto mavioso, que pode ser apreciado através dos mais de 120 discos que gravou, entre 78 rpm’s, LP’s, compactos e CD’s, é o seu maior legado. A voz que se calou em 2018, beirando os 90 anos, continua ecoando nos corações apaixonados. Nunca teremos uma cantora tão maravilhosa quanto! Ela é, assim como dizem alguns versos de suas canções, “o mel que a abelha tira da flor” e “a palavra mais linda que um dia o poeta escreveu”. Nem Grande Otelo conteve a emoção ao contemplar a beleza do seu cantar. Faltam palavras e sobra emoção diante da melodia de sua boca. Não à toa, o ilustre professor Leandro Karnal expressou: “difícil definir talento. Fácil identificá-lo em Angela Maria”.


Texto por Davi Vieira

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