CASSIANO: O GÊNIO DO SOUL BRASILEIRO

 

Os anos 60 foram, de fato, revolucionários, sob vários aspectos. Sob o ponto de vista comportamental, houve a grande celebração da liberdade sexual, mudanças nas vestimentas, na linguagem. Por outro lado, foram tempos de muita repressão e agressividade, com a Guerra do Vietnã (que ainda vigorava), a tensão entre EUA e Cuba, e aqui, no Brasil, a instauração de uma ditadura militar que duraria duas décadas. As artes desempenharam um papel fundamental, quanto à liberdade de expressão e reafirmação de uma modernidade latente, através do Cinema Novo, das canções de protesto e festivais culturais exibidos na televisão.

Nesse contexto, surgiu, em disco, ao final da década, dentro do cenário musical, que àquela altura era dominada pelo “iê iê iê” de Roberto e Erasmo Carlos, ídolos da Jovem Guarda, participando do álbum do Grupo Os Diagonais, do qual fazia parte, o jovem Cassiano, um cantor, compositor e guitarrista, com influência da Bossa Nova, do Jazz e do Soul, que havia sido violonista do Bossa Trio. Esse músico moderno tornar-se-ia, ao lado de Hyldon e Tim Maia, um dos precursores da black music brasileira - ou música negra brasileira -, que traria para a nossa realidade, definitivamente, o soul e o funk norte-americanos, revolucionando o cancioneiro popular do país.

Fã de Marvin Gaye, Otis Redding e Stevie Wonder, encontrou em Tim Maia o seu maior parceiro, com o qual contribuiu em seu álbum de estréia no mercado fonográfico. São dele a autoria de quatro das doze faixas do disco de 1970, que já consagraria o Síndico: “Você Fingiu”, “Padre Cícero” (parceria entre ambos), “Eu Amo Você” e “Primavera (Vai Chuva)”. As duas últimas, que contaram com a parceria de Silvio Roachel, estouraram nas rádios, com enorme sucesso e converteram-se em clássicos imortais da música brasileira.

O bom resultado possibilitou a Cassiano gravar seu primeiro álbum-solo, o “Imagem e Som”, lançado pela RCA Victor, maior gravadora do país à época e uma das maiores do mundo, que contava com nomes como Elvis Presley e Nelson Gonçalves em seu casting. Todavia, o lançamento não surtiu o efeito esperado, apesar da qualidade do repertório, ganhando tardiamente um reconhecimento especial, por misturar, sofisticadamente, samba, funk e soul, numa miscelânea de gêneros, que representa uma modernidade especial, com relação ao que dominava o gosto popular àquela altura.

Com trânsito, também, pelo rock psicodélico, o êxito na carreira de intérprete chegou em 1975, quando gravou “A Lua e Eu” e “Coleção”, composições que resultaram de sua parceria com Paulo Zdanowski, e que foram, posteriormente, incluídas em trilhas sonoras de duas novelas da Rede Globo, a saber, “O Grito”, de Jorge Andrade, e “Locomotivas”, de Cassiano Gabus Mendes, respectivamente, no mesmo ano da lançamento das músicas e em 1977. Seu álbum “Cuban Soul” alcançou sucesso comercial e tornou-se referência em sua obra.

Nomes como Sandra de Sá, Cláudio Zolli e Ed Motta, foram diretamente influenciados por seu trabalho, e transitaram pelo caminho da black music, que fora asfaltado e trilhado, também, por ele, que fez dueto com os mesmos em seu último álbum de estúdio, o “Cedo ou Tarde”, uma espécie de tributo, que também contou com a participação de Djavan, Luiz Melodia e então estreante Marisa Monte, em 1991.

O paraibano de Campina Grande nascido em 1943, e que teve intensa convivência com Jackson do Pandeiro na infância, entrou para a história cultural do país, como um músico revolucionário que inspirou gerações e deu ao seu povo muitas alegrias, com a singularidade de suas letras, que são, em sua maioria, cantadas até os dias atuais, uma vez que são atemporais. Se por um lado, não conquistou o mesmo sucesso de contemporâneos e amigos com Tim Maia, conseguiu imortalizar-se pela grandeza de suas criações que perdurarão na eternidade da memória afetiva dos que acompanharam sua trajetória e nos ouvidos das novas gerações que têm a oportunidade de conhecer tudo o que realizou.

Cassiano é mais um dos personagens fundamentais da nossa identidade musical, que jamais deve ser esquecido ou ignorado, como, lamentavelmente, tem sido. Recentemente, e com o agravamento dos problemas pulmonares que enfrentava desde a juventude, o perdemos para a covid-19, a doença pandêmica, que já ceifou milhões de vidas mundo afora, dentre elas, fenomenais artistas de suma importância para a nossa história. Todavia, o céu onde a música jamais cessa, ganhou, com sua partida, aos 77 anos, mais uma estrela que brilhará ao lado de outras, iluminando as noites escuras que temos enfrentado, com a luz de suas melodias tão inspiradas e inspiradoras. Daqui admiramos a paisagem, repetindo um de seus versos: “hoje o céu está lindo”, e na esperança de dizer que “é primavera”, quando as flores da saúde voltarem a brotar no jardim da vida.

Texto por Davi Vieira

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