NELSON GONÇALVES, O BOÊMIO QUE NUNCA PARTIU


 O Brasil é o país das cantoras! Essa afirmação é um consenso entre a maioria dos músicos, da crítica especializada e do próprio público. Não é preciso muito esforço para lembrarmos nomes femininos que fizeram história na nossa música. É o caso de Elis Regina, Angela Maria, Dalva de Oliveira, Gal Costa, Maria Bethânia, Nara Leão e tantas outras, nas mais variadas épocas e vertentes musicais. Isso não quer dizer que temos poucos cantores, mas que as vozes do sexo feminino os suplantam em coeficiente.

O Brasil também é o país dos cantores! O Clube de Esquina nos legou a voz de Milton Nascimento. A Bossa Nova trouxe uma estética moderna que inspirou Emílio Santiago, Agostinho dos Santos e Pery Ribeiro. A Era do Rádio nos trouxe Francisco Alves, Orlando Silva, Carlos Galhardo e, claro, Nelson Gonçalves, que completaria, hoje, 102 anos. A voz grave, aveludada e potente do baixo-barítono imortalizou grandes sucessos e aqueceu os corações de multidões, ao longo de 60 anos de carreira.

O Boêmio cantava os amores urbanos, os desencontros e a vida noturna, em sua extensa discografia, que detém recorde mundial. Compositores como Herivelto Martins, David Nasser, Jair Amorim e Evaldo Gouveia foram alguns dos mais gravados por ele. No entanto, Adelino Moreira foi o seu fiel parceiro, que lhe entregou os maiores êxitos de sua trajetória. São dele a autoria de clássicos populares, como “Mariposa”, “Fica comigo esta noite”, “Meu vício é você” e “A Volta do Boêmio”. Este último, lançado em 1957, pela RCA Victor, é considerado o maior emblema da obra do Metralha (como Nelson era conhecido por sua taquilalia). A partir da estrondosa repercussão, veio o apelido acima referido.

Durante os anos 40 e parte dos 50, foi o cantor mais popular do país, reinando absoluto nas ondas da Rádio Nacional, nos discos de 78 rpm e nos long-plays (LP’s), que surgiram posteriormente. Inclusive, lhe coube a primazia de gravar um LP dedicado à obra de Noel Rosa, que caiu como uma luva em sua voz imponente, bem moldada ao estilo predominante na Era do Rádio, em que figuravam os cantores de vozeirão, a exemplo de seu ídolo Orlando Silva - que o inspirou e com quem tinha uma semelhança de timbre assustadora - e Carlos Galhardo - responsável por sua primeira contratação numa emissora de rádio -, e da qual fez parte como um de seus maiores e mais importantes personagens.

Os sambas-canção, boleros, tangos, foxes e demais gêneros populares que interpretava falavam ao coração do público, que o tornou o segundo recordista em vendagem de discos da música brasileira, com 81 milhões de cópias vendidas, de 1941 (quando estreou no mercado fonográfico) até os dias atuais. Até os próprios críticos musicais reconheciam o valor do seu talento. E não foi à toa que grandes nomes do nosso cancioneiro tiveram em Nelson uma referência. Foram os casos de Caetano Veloso (que deu nome à sua irmã, com base na valsa “Maria Bethânia”, de Capiba, gravada por ele nos anos 40), Gal Costa, Jessé e Tim Maia. Inclusive, todos fizeram duetos com o Rei do Rádio, nos álbuns “Eu e Eles” e “Eu e Elas”, dos quais também participaram, artistas como Elza Soares, Angela Maria, Beth Carvalho Alcione, Luiz Gonzaga, Chico Buarque e Lobão (com quem lançou “A Deusa do Amor).


Eclético, na medida do possível e sem fugir à sua estética, Nelson deu voz à temas de Roberto e Erasmo Carlos (“Desabafo” e “Proposta”; Tom Jobim e Vinícius de Moraes (“Corcovado” e “Chega de Saudade”); Edu Lobo e Torquato Neto (“Pra dizer adeus”), Johnny Alf (“Eu e a Brisa”); Cartola (“As Rosas não Falam”, “O Mundo é um Moinho”, “Peito Vazio” e “Sim”) e, até, Benito di Paula (“Retalhos de Cetim”) e Roberta Miranda (“De Igual pra Igual”). Rodrigo Faour, biógrafo de Cauby Peixoto, Angela Maria e Dolores Duran, produziu a excelente coletânea “Nelson: moderno e eterno”, em que desfrutamos de sua versatilidade. Inclusive, seu último álbum, “Ainda é Cedo”, de 1997, produzido por Robertinho do Recife e premiado com Disco de Ouro, foi inteiramente composto por hits dos anos 80 e 90, de figuras como Lulu Santos, Marina Lima, Marisa Monte e bandas como Paralamas do Sucesso e Legião Urbana. Também é dele a mais aclamada gravação do samba “Naquela Mesa”, declaração emocionada de Sérgio Bittencourt a seu pai, Jacob do Bandolim.

Como reconhecimento ao seu trabalho e pela longevidade de seu contrato, a RCA Victor, a única gravadora de sua vida, o homenageou com Prêmio Nipper, conferido aos integrantes de seu casting de maior sucesso. Apenas um outro cantor recebeu o referido troféu. Ninguém mais, ninguém menos que Elvis Presley, o Rei do Rock. Apesar de cantarem em diferentes estilos, o rock era um ponto comum entre ambos. Nelson tinha forma rock’n roll de vida, intensa, com muitos amores, aventuras, loucuras - que lhe renderam dezenas de filhos e centenas de pedidos de paternidade - e até, experiências dramáticas, como o seu envolvimento com as drogas, que em nada diminuiu o seu tamanho enquanto ídolo nem o seu talento enquanto vocalista. A forma de vida intensa foi muito bem expressa em “Auto Retrato”, tango de Adelino Moreira, que lançou no álbum homônimo de 1989.

Apesar de morto há mais de duas décadas, a voz de ouro continua viva no imaginário popular, sobretudo, entre os antigos fãs que puderam acompanhar sua carreira, seus filhos que aprenderam a ouvi-lo e demais pessoas de várias idades que têm a oportunidade de apreciar um dos maiores cantores de todos os tempos. Enquanto houver amor, botequim e boêmia, Nelson viverá, nas residências, nos bares, rodas de seresteiros e em qualquer outro lugar, seja através do YouTube (onde coleciona milhões de visualizações), das plataformas digitais, das velhas vitrolas ou performances com novas roupagens. Nelson é o boêmio que nunca partiu, e que nunca faltará naquela mesa.


Texto por Davi Vieira

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