NOSSA ABELHA RAINHA: MARIA BETHÂNIA

“Eu sou a chuva que lança a areia do Saara sobre os automóveis de Roma; eu sou a sereia que dança, a destemida Iara, água e folha da Amazônia”. Estes são alguns dos versos de “Reconvexo”, uma resposta em forma de composição ao jornalista Paulo Francis, feita por Caetano Veloso e imortalizada na voz de Maria Bethânia, sua irmã. Sua interpretação é tão intensa, que transparece a ideia de que tais versos foram escritos sob medida, pois se apropria deles com maestria, como se descrevesse a si própria.

Mas, afinal, quem é Maria Bethânia? A convergência entre “masculino e feminino”, “popular e sofisticado”, “técnica e emoção”? Difícil e, até, desnecessário, defini-la; fácil admirá-la! Sim, pois chegar aos 75 anos ativa e produtiva é uma dádiva para poucos. A Abelha Rainha da MPB segue nos encantando com o mel de sua voz, uma das maiores de todos os tempos, e que a colocou no panteão das grandes divas do nosso cancioneiro popular, predominantemente feminino. Seu nome, em si, já é musical! Caetano, aos três anos de idade, se encantou, ao ouvir no rádio, na voz de Nelson Gonçalves, os versos de Capiba: “Maria Betânia, tu és para mim a senhora do engenho. Em sonhos te vejo, Maria Betânia és tudo que eu tenho”. Daí o pedido para que a próxima filha de Dona Canô recebesse o tão aclamado nome que faria história. 

A baiana de Santo Amaro da Purificação, contemporânea dos igualmente baianos Gal Costa e Gilberto Gil - com quem deu seus passos iniciais na carreira -, que consagrou-se em 1965, no teatro, estrelando a peça “Opinião”, substituindo Nara Leão à pedido dela própria, possui uma das mais brilhantes trajetórias dentre os artistas. Sempre prezando pela qualidade do repertório, com uma inteligência interpretativa descomunal e o domínio absoluto de seu aparelho vocal, a contralto transita por diversos gêneros musicais, como a bossa nova, o samba, o bolero, a toada e outros tantos, com grande qualidade, o que demonstra a sua versatilidade. Sua ampla discografia, cuja vendagem ultrapassa a marca das 20 milhões de cópias, inclui obras-primas de Chico Buarque, Edu Lobo, Noel Rosa, Lupicínio Rodrigues e vários mestres que compõem a nossa identidade. Em sua obra extensa, destacam-se temas sociais, românticos, religiosos de matriz africana e releituras de clássicos. 

“Carcará” (João do Valle/José Cândido), lançada no espetáculo homônimo de Oduvaldo Vianna Filho, Ferreira Gullar, Paulo Pontes e Armando Costa, que a introduziu na cena artística e seu primeiro sucesso, é um grito de protesto contra a seca, a fome e as desigualdades sociais históricas no sertão nordestino, em plena instauração da Ditadura Militar. “Grito de Alerta” (Gonzaguinha, inspirado numa real história vivida por Agnaldo Timóteo, seu amigo) é o desabafo de um coração apaixonado. “Explode Coração”, do mesmo compositor, uma reflexão que leva à manifestação de sentimentos e desejos ocultados, abafados. “Negue” (Adelino Moreira), que fez sucesso em vozes como as de Roberto Vidal, Nelson Gonçalves e Cauby Peixoto, e que ganhou novo fôlego na interpretação visceral de Bethânia, expressa a angústia da possibilidade de uma rejeição.

Autêntica, a cantora que se inspirou em Dalva de Oliveira, e que interpreta o Brasil caboclo, miscigenado e diverso do qual faz parte (também recitando poemas de Fernando Pessoa, Castro Alves e fazendo seus próprios versos), vive como canta: intensamente. Sem qualquer raiz de amargura ou queixume, refletiu: “Eu gosto dos meus cabelos brancos. Das rugas, são minhas, o tempo me deu. Envelhecer é privilégio. A voz mora em mim, mas não sinto como se fosse minha. É uma expressão de Deus, uma fagulha”. Bem resolvida sob todos os aspectos, convicta de seu valor e engajada em sua arte, a estrela apontada pela Rolling Stone como a quarta maior voz brasileira e doutora honoris causa em música, por sua contribuição ao país, merece todas as homenagens pelo imenso legado e por tudo que ainda poderá vir a fazer.

Texto por Davi Vieira