OS 90 ANOS DE JOÃO GILBERTO E A SAUDADE QUE NÃO SAI DE NÓS
Em 1958, um banquinho, um violão e uma batida diferente mudaram a música brasileira e mundial para sempre. E por trás dessa mudança, havia, ninguém mais, ninguém menos, que o mestre João Gilberto, que hoje completaria 90 anos de idade.
O baiano juazeirense, nascido em 1931, foi o maior responsável pela criação de um movimento, que se converteria em gênero musical e influenciaria gerações de músicos nacionais e internacionais: a Bossa Nova.
O seu marco inicial deu-se com a primeira gravação de “Chega de Saudade”, hoje clássico de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, que também foram expoentes da revolução bossa-novista, ao lado de Johnny Alf, Carlos Lyra e outros. No álbum “Canção do Amor Demais”, gravado por Elizeth Cardoso e lançado pelo selo Festa, formado por composições deles, foi ouvido pela primeira vez o som do violão daquele que Caetano Veloso chamou de “bruxo de Juazeiro”.
Desde então, o cancioneiro popular de toda a face da Terra jamais foi o mesmo. No Brasil, especificamente, segundo Ruy Costa, “a música popular se divide em antes e depois de João Gilberto”. E não é nenhum exagero afirmar isso!
Antes do “baiano bossa nova”, nossa estética era altamente influenciada pelo bel-canto italiano, com predominância de vozeirões impostados, carregados de vibratos e com amplas extensões.
Por isso, no início das gravações no Brasil, ainda no modo mecânico da Casa Edison, reinavam cantores como Mário Pinheiro e Vicente Celestino e Pepa Delgado. Com a chegada da gravação elétrica, no final dos anos 20, a potência deixou de ser a condição essencial de se gravar uma música, mas ainda necessária.
Nesse contexto, surgiu Mário Reis, com sua voz suave, sem vibratos e uma divisão musical inédita, amplificada pelos microfones. Mas, foi Francisco Alves que recebeu o título de “Rei da Voz” na década seguinte, por também ser um “dó de peito” e que deteve a maior popularidade dentre todos os cantores até sua morte trágica e repentina no início dos anos 50.
Em 1935, apareceu o moderníssimo Orlando Silva (considerado por muitos o maior cantor brasileiro e que serviu de referência para o pai da Bossa), que também era portador de uma grande voz, mas diferenciava-se dos demais por cantar com menos impostação e apresentar uma dinâmica diferente, com seus falsetes, pianíssimos, vibratos comedidos e improvisações de bocca-chiusa, impressionando o tenor lírico Tito Schippa que, em visita ao Brasil, considerou o “cantor das multidões” como “a melhor voz natural” que já havia escutado.
Nos anos 40, vieram os também modernos Dick Farney (cujo centenário de nascimento será comemorado neste ano) e Lúcio Alves, com uma forma de cantar mais sofisticada e menos formal, ambos com uma forte veia jazzística. Dick, inclusive, foi o primeiro a gravar “Tenderly”, nos EUA, alcançando sucesso na terra de Nat King Cole, que regravaria a canção posteriormente.
Mas, a grande revolução somente aconteceu com o pai de João Marcelo, Luisa Carolina e Bebel Gilberto, que herdou o talento dos pais, já que também é filha da cantora Miúcha.
A música “revolucionária” de João Gilberto - que já havia cantado com vozeirão no Garotos da Lua -, registrada em disco pela primeira vez no long-play (LP) “Chega de Saudade”, lançado pela gravadora Odeon, causou revolta em alguns e fascínio em outros. Revolta porque destoava bastante do padrão ao qual os ouvintes estavam acostumados. E fascínio porque era diferente de tudo o que já havia aparecido na cena musical do país.
Sua voz pequena e quase sussurrada soava, aparentemente, desafinada e sem sincronia com o acompanhamento de seu violão, que alternava entre adiantamento e atraso do andamento da canção, gerou várias críticas de alguns dos maiores cantores da época. Nelson Gonçalves, por exemplo, em “Seresta Moderna” (Adelino Moreira), referiu-se indiretamente a João como “um palhaço cantando sem voz um samba sem graça, desafinado que só vendo”. A resposta às críticas veio na gravação de “Desafinado” (Tom Jobim/Newton Mendonça).
A “desafinação” gilbertiana formou e influenciou vários adeptos, como Chico Buarque (irmão de Miúcha e cunhado de João), Caetano Veloso, Roberto Carlos, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Gal Costa, e até, Eric Clapton e Diana Krall.
Também levou o nome do Brasil aos quatro cantos do planeta. Em 1962, chegou ao palco do Carnegie Hall, em Nova York. O histórico show de João, acompanhado por Jobim, Luiz Bonfá (conhecido pelo seu sucesso mundial “Manhã de Carnaval”, tema do filme “Orfeu Negro”, vencedor do Oscar de 1959), Carlos Lyra, Sérgio Mendes e Agostinho dos Santos, dentre outros, foi assistido por nomes como Peggy Lee, Miles Davis e Tony Bennett (que considera JG o seu cantor preferido). E um ano depois, “Garota de Ipanema”, na voz de Astrud Gilberto, o então marido pai da Bossa, acompanhada pelo piano de Tom e o saxofone de Stan Getz, levou o álbum “Getz/Gilberto” e o gênero Bossa Nova à conquista do Grammy Awards, desbancando os Beatles. Com tudo isso, os jazzistas norte-americanos que, de certa forma, influenciaram a sua criação, passaram a inclui-la em seus repertórios. Foi o caso de Sarah Vaughan, Ella Fitzgerald, Nina Simone e Frank Sinatra, que gravou um fantástico álbum com Tom. Assim, a revolução musical brasileira transformou o mundo inteiro.No entanto, o Brasil nunca a entendeu. E muito menos a genialidade de João. Gênio incompreendido e, muitas vezes, mal-interpretado, por suas idiossincrasias, o “rei do violão”, desentendeu-se com plateias, chegou a ser xingado e, até, vaiado. Mas, nada que não fosse suplantado pelo seu incrível talento que, durante 50 anos o fez lotar casas de show mundo afora, sempre ovacionado e reverenciado pelo público e pela crítica. No Japão, por exemplo, foi aplaudido de pé por 15 minutos ininterruptos durante uma apresentação, nos anos 2000. Até hoje, o país oriental o ama e cultua a sua arte, em clubes de Bossa e música brasileira em geral.
Se hoje, a nossa música é ouvida e respeitada mundialmente, devemos isso a João Gilberto. Apesar de Carmen Miranda ter sido a primeira personalidade brasileira a explodir no exterior, com filmes em Hollywood e cantando músicas nacionais, o que lhe rendeu uma estrela na Calçada da Fama, foram “um cantinho e um violão” que mostraram ao mundo toda a identidade da nossa nação. Ary Barroso também merece uma menção honrosa por sua “Baixa do Sapateiro” e, óbvio, pela “Aquarela do Brasil”, nosso segundo hino nacional, que ganhou os quatro continentes a partir de 1942, quando fez parte da trilha sonora de “Saludos Amigos”, clássico do cinema que a Disney imortalizou, com destaque para o personagem Zé Carioca, um papagaio brasileiro e malandro. Mas, foi o intérprete de “Samba de Uma Nota Só” que nos colocou, de fato, no “mapa-mundi”.
João foi um dos maiores e mais importantes personagens da história da civilização humana! Sua obra é um patrimônio do qual devemos nos orgulhar. Se por um lado, o Brasil como um todo perde a oportunidade de fazê-lo, o restante do mundo a exalta. Nem mesmo Jesus foi honrado em sua própria terra. Não deve causar espanto que o mesmo aconteça com João ou qualquer outro mortal. Goste quem gostar! Afinal, “pra quê discutir com madame”? O importante é que seu nome, sua história e seu trabalho vivem na alma de quem têm a oportunidade de aprecia-lo. Não importa, se somos brasileiros, estadunidenses ou japoneses. O que João criou pertence ao mundo e pode ser conferido nos mais de 20 álbuns que gravou e registros avulsos de fãs apaixonados disponíveis na internet. E assim, a “saudade que não sai de nós” pode ser aliviada até “o apagar da velha chama” com “o amor, o sorriso e a flor” de suas célebres canções, semelhantes a um “barquinho a deslizar no macio azul do mar”.
Texto por Davi Vieira
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