CAYMMI: O ROSTO, A VOZ E A ALMA DO BRASIL


Há exatos 13 anos, o Brasil despedia-se de um dos mais ilustres personagens de sua história. O baiano Dorival Caymmi, cantor, compositor e instrumentista, construiu uma das mais importantes obras do nosso cancioneiro popular, enriquecendo a musicalidade de nosso povo e imortalizando seu nome na galeria dos heróis da cultura nacional.

Ensinar a Carmen Miranda “o que é que a baiana tem” já é, por si só, uma glória. Todavia, o legado do marido de Stella Maris e pai de Dori, Danilo e Nana Caymmi é ainda maior. Com uma linguagem simples e, ao mesmo tempo, profunda - ponto em comum com o carioca Cartola -, ele soube retratar, como ninguém, nas letras e na voz grave de baixo-cantante, os hábitos, costumes e tradições de sua Bahia, bem como, as reminiscências dos gêneros populares negros, temas religiosos de matriz africana (era devoto do candomblé) e exaltações aos elementos e fenômenos da natureza, sempre com riqueza de melodias e um estilo muito original e particular. Basta ouvirmos “O Samba da Minha Terra” (1940), lançado pelo Bando da Lua e regravado, posteriormente, por João Gilberto e Novos Baianos; “Vatapá” (1942), lançado pelos Anjos do Inferno; “Saudade de Itapoã” (1947) e “O Mar” (1940) - ambas lançadas em sua interpretação -, para constatarmos tudo isso.

E como se não bastasse, também era capaz de produzir temas românticos de grande qualidade. São os casos de “Marina” (1947), lançada, à época, por Francisco Alves, Nelson Gonçalves e Dick Farney; “Nem Eu” (1952) - hoje, clássico -, lançada por Angela Maria, no período em que apresentaram, juntos, o show “Coisas e Graças da Bahia”, na Boate Vogue, no Rio de Janeiro; “Não tem Solução” (1952), em parceria com Carlos Guinle, à qual também deu voz e que ganharia regravações, como as de Dick Farney e Wilson Simonal e “Só Louco” (1956), que também tornar-se-ia clássico da música brasileira, com uma série de releituras, como as de Cauby Peixoto, Gal Costa e sua própria filha, Nana Caymmi. 

Moderno, eclético e preciso, entre sambas, sambas-canções, toadas e, até, bossas, Caymmi imprimiu sua marca e ajudou a consolidar e solidificar a musicalidade popular do Brasil, ao longo de mais de 70 anos de carreira, iniciada em 1934. Sem nenhum favor, pode ser colocado ao lado de Ary Barroso, Noel Rosa ou Chico Buarque enquanto compositor. Como instrumentista, ao lado de Luiz Gonzaga, Carlos Lyra ou Francis Hime. Como cantor, ao lado de Nelson Gonçalves, Lúcio Alves ou Silvio Caldas. Não necessariamente, por desnecessárias comparações, mas à título de citações e correspondências. Afinal, não se comparam gigantes. E certamente, o criador de “Maracangalha” (1957) foi um deles. 

Suas influências se fazem presentes, até hoje, nas obras de grandes artistas. Aliás, grandes discípulos seus. Um deles é Caetano Veloso que, em certa ocasião, declarou isto: “Dorival Caymmi tem 70 músicas e eu, 200. Mas, ele tem 70 músicas perfeitas. Eu, não”. Nas palavras de Gilberto Gil, “Dorival Caymmi é. Não foi. Sou fluxo decorrente dele”. Outro, foi o já citado João Gilberto, que revolucionou a forma de se fazer música, a partir da Bossa Nova, regravando, inclusive, composições do mestre que nos deixou em 2008, aos 94 anos, vítima de complicações de um câncer renal, contra o qual lutava há mais de uma década.

Caymmi, contemporâneo e conterrâneo de Jorge Amado - com quem foi confundido por diversas vezes, conforme declarou em entrevista concedida a Jô Soares, em 1997 -, tinha (e ainda tem) a cara do Brasil. Descendente de italianos, portugueses e africanos, o também ator e poeta, representava, assim como Clara Nunes, a miscigenação - que não deve ser romantizada, pelas circunstâncias em que se deu - que nos formou enquanto nação e nos faz ser um povo diversificado sob vários aspectos. Sua contribuição indispensável à nossa identidade musical lhe rendeu o reconhecimento do público, da crítica e dos músicos em geral. Mais que isso, a homenagem do Prêmio Sharp (hoje, Prêmio da Música Brasileira) e a Ordem do Mérito Cultural (OMC), entregue pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

É sempre válido, importante e necessário rememorarmos nomes como o de Dorival. Sua figura doce e carismática. Suas canções. Seu legado. Sua história, que também é a nossa. Sobretudo, pelo fato de que o nosso país tem o hábito de não cultivar sua memória e valorizar, somente, o comercial, em nome de um mercado fonográfico alienado e alienante, que, aos poucos, vai desfigurando a identidade musical do país construída por pessoas como Caymmi que, assim como, “o mar quando quebra na praia”, “é bonito”. E apesar de não ser “quem inventou o amor”, entendeu que “não tem solução”. Por isso, “vamos chamar o vento” e aplaudir de pé o talento de uma das maiores glórias já nascidas em solo brasileiro.


Texto por Davi Vieira

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