CLARA NUNES, VIVA A GUERREIRA!


“Se vocês querem saber quem sou, eu sou a tal mineira, filha de Angola de Ketu e Nagô. Não sou de brincadeira. Canto pelos setes cantos, não temos quebrantos, porque eu sou guerreira”. Com esses versos de Paulo César Pinheiro e João Júnior, do samba “Guerreira”, título do LP homônimo - lançado pela EMI Odeon, em 1978 -, definia-se Clara Nunes, grande diva da música brasileira, que completaria, na data de hoje, 79 anos de idade.

Dona de uma voz forte e marcante, a estrela nascida no pequeno distrito de Cedro, filha caçula (dentre sete irmãos) do modesto casal Manuel Pereira de Araújo e Amélia Gonçalves Nunes - dos quais ficou órfã ainda criança -, deixou sua marca nos ouvidos, corações e almas de milhões de brasileiros. Pesquisadora do nosso folclore e intérprete de ritmos brasileiros, assim como, de temas religiosos de matriz africana, não obstante a sua formação inicial católica, foi uma das mais populares e importantes cantoras do Brasil, tendo sido, inclusive, a primeira mulher a atingir a marca de 1 milhão de discos vendidos no país. Contemporânea de nomes como Elis Regina, Gal Costa e Maria Bethânia, encantou o mundo, destacando-se em vários países europeus, latino-americanos e no Japão, foi um dos maiores cartazes da década de 70, com dezenas de músicas nas paradas de sucesso e bastante elogiada pela crítica especializada, o que demonstrava o amor do público e o respeito dos críticos ao seu trabalho. Tanto é que, em 1978, numa pesquisa de opinião encomendada pela Rede Globo ao Ibope, e exibida no Fantástico, foi apontada como a segunda cantora mais popular do país, perdendo, apenas, para Angela Maria e superando as próprias Elis, Gal e Bethânia no quesito em questão.

Mas, apesar de sua consagração estar diretamente vinculada aos sambas, deu início à carreira musical sob a influência dos seus ídolos, ou melhor, ídolas, da infância. Carmen Costa, Dalva de Oliveira, Angela Maria e Elizeth Cardoso foram as suas principais inspirações no canto. A última, por exemplo, numa entrevista concedida a Leda Nagle no início dos anos 80, apontou Claridade como a sua sucessora. Imergida no universo dos sambas-canções, boleros, tangos e valsas, não foi por acaso que, aos 12 anos, venceu um concurso musical promovida em sua cidade, interpretando a guarânia “Recuerdos de Ypacaraí” (Demetrio Ortiz). Também não é nenhuma surpresa o fato dela ter se apresentado por diversas vezes na Rádio Inconfidência, cantando o repertório em questão. Menos ainda, a presença dos mesmos gêneros em seu primeiro LP, intitulado “A adorável voz de Clara Nunes” e lançado pela Odeon.

Das mãos de Ataulfo Alves, o célebre compositor de “Meus tempos de criança”, “Atire a primeira pedra”, e “Ai que saudade da Amélia” - as duas últimas em parceria com Mário Lago -, veio o seu primeiro sucesso real, o samba “Você passa eu acho graça” (parceria com Carlos Imperial). Foi o próprio sambista quem a aconselhou a investir no gênero. Conselho este, seguido, e que a levou aos píncaros da glória. Posteriormente, lançou obras-primas como “Ê Baiana” (Fabrício da Silva, Baianinho, Ênio Santos Ribeiro e Miguel Pancrácio), “Na linha do mar” (Paulinho da Viola), “Conto de Areia” (Antônio C. N. Pinto/Romildo S. Bastos) - também gravada por Clementina de Jesus -, e “Coisa da Antiga” (Nei Braz Lopes/Wilson Moreira Serra). Sua gravação de “Canto das Três Raças” (Mauro Duarte/Paulo César Pinheiro) - faixa-título do álbum de 1976 - é, sem dúvidas, a versão definitiva deste clássico. Idem, “Morena de Angola”, de Chico Buarque, gravada em 1980. Sem esquecermos, é claro, de “A Deusa dos Orixás” (Antônio C. N. Pinto/Romildo Souza Bastos).

Sabiá, Mestiça Mística, Mineira e Guerreira são alguns epítetos utilizados para se referir a Clara Nunes, que cantava como vivia: intensamente. Foram seis intensos anos de casamento com Paulo César Pinheiro, várias tentativas frustradas de engravidar, milhares ou milhões de shows, quase 20 álbuns de estúdio e um amor especialíssimo pela Portela, sua escola de samba do coração, à qual dedicou o samba homônimo. Ela não apenas cantava como vivia, mas também cantava o que vivia e o que cria, expressando, assim, a sua fé, o que foi, e ainda é, de suma importância dentro de uma nação miscigenada como a nossa, com uma enorme diversidade cultural, mas na qual persiste o preconceito, sobretudo, o religioso. Sendo os brasileiros majoritariamente cristãos (com uma maioria católica), as religiões de matriz afro são alvo de discriminação, o que acaba levando à perseguição. Aliás, historicamente, os negros trazidos da África para serem escravizados em solo brasileiro, a partir do século XVI, foram proibidos de manifestarem a fé em sua integralidade. Ter alguém como Clara cantando cantos de trabalho, jongos, sambas de terreiro e vestida com as indumentárias típicas é algo muito significativo num contexto de intolerância histórica.

Eclética dentro de sua proposta, visionária e revolucionária, é uma das personagens fundamentais da história da MPB, digna de homenagens sempre, por tudo o que representou e representa até hoje. Clara é a morena de Angola que leva o chocalho da liberdade amarrado na canela cansada de penar, a sereia que samba na beira do mar da ignorância e o faz serenar, a guerreira que luta contra a intolerância, o soluçar de dor no canto do Brasil, a união das três raças que formaram o nosso povo. Clara pode ser muito mais que isso. Só não é conto de areia, nem fantasia. Sua arte é real e verdadeira! Seu brilho a eternizou em vida! Por isso, seu canto ainda ecoa neste mundo de ilusão, que a viu sorrir, mas jamais a viu chorar. Viva a Guerreira!


Texto por Davi Vieira

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