OS 100 ANOS DE DICK FARNEY


 “Copacabana, princesinha do mar. Pelas manhãs tu és a vida a cantar”. Esses versos de Braguinha (1907 - 2006) e Alberto Ribeiro (1902 - 1971), que exaltam uma das mais famosas praias do Rio de Janeiro e do Brasil, marcaram o primeiro grande sucesso de Farnésio Dutra e Silva; ou melhor dizendo, Dick Farney (1921 - 1987), que completaria 100 anos na data de hoje.

Pianista de formação erudita e com uma veia jazzística, com sua voz grave, aveludada e suave, Dick foi moderno para seu tempo e fez história na música brasileira. Depois de Mário Reis (1908 - 1981) - que surgiu juntamente com o microfone e a gravação elétrica, em 1927 - e Orlando Silva (1915 - 1978) - o célebre “cantor das multidões”, que despontou no início dos anos 30 -, é um dos maiores revolucionários do cancioneiro popular nacional em sua fase pré-Bossa Nova. 

Uma década antes do surgimento oficial do movimento que mudaria os rumos musicais do país para sempre, Dick já mostrava um repertório diferenciado harmônica e melodicamente, ainda que dentro do samba-canção (que teria em Tito Madi o seu “estilista”), o gênero predominante à época, em que figuravam letras no estilo dor-de-cotovelo, cantadas à plenos pulmões por vozeirões como os de Francisco Alves (1898 - 1952) - o “rei da voz” - e Nelson Gonçalves (1919 - 1998) - o “metralha” -. Farney, que futuramente aderiria à “revolução” de João Gilberto (1931 - 2019), em contrapartida, demonstrava um canto mais comedido, com linhas melódicas diferentes, explorando os graves e médios de sua voz, possivelmente, pela sua influência dos standards norte-americanos. 

 Com uma pronúncia impecável do inglês, gravou obras primas, como “Night and Day” (Cole Porter), “All The Way” (Jimmy Van Heusen) e “The Lady is a Trump” (Richard Rodgers). Também foi o primeiro a registrar em disco o clássico “Tenderly” (Jack Lawrence/Walter Gross), também gravado por Nat King Cole (1919 - 1965) e Frank Sinatra (1915 - 1998) - com quem tinha uma espantosa semelhança vocal -, quando de sua passagem pela Broadway, em 1947. Nesse mesmo período, chegou a integrar o casting do comediante Milton Berle, na NBC.

 Como se não bastasse ser um super músico, também brilhou nos cinemas (um pouco menos que seu irmão, o ator Cyll Farney, galã da era de ouro), atuando em produções da Atlântida e da Cinédia, como “Somos Dois”, dirigido por Milton Rodrigues (diretor, ator e roteirista); “Carnaval Atlântida”, de José Carlos Burle (compositor, ator e cineasta, sendo um dos fundadores da Atlântida); e “Perdidos de Amor”, de Eurides Ramos (diretor, roteirista e produtor, fundador da Cinelândia Filmes). Na TV, apresentou programas nas emissoras Record e Globo (nesta, em parceria com a atriz Betty Faria), durante a década de 60.

Ao longo de quase cinco décadas de vida musical, lançou sucessos que se eternizaram, a exemplo de “Copacabana”, o samba-canção já citado; “Marina” (Dorival Caymmi) - lançada simultaneamente por Farney, o próprio compositor, Francisco Alves e Nelson Gonçalves -; “Este seu Olhar” (Tom Jobim) e “Teresa da Praia” (também do “maestro soberano”), em duo com Lúcio Alves (1927 - 1993) - seu amigo e maior parceiro musical -. O som inconfundível de seu piano, a beleza de sua voz e o repertório cool, além de encantarem multidões, influenciaram outros nomes fundamentais da musicalidade brasileira. Foi esse o caso de Cauby Peixoto (1931 - 2016), que deu seus primeiros passos influenciado por seu ídolo - a quem dedicou seu último e póstumo álbum, lançado em 2017: “Cauby canta Dick Farney”, pelo selo Biscoito Fino, com produção de Thiago Marques Luiz -.

 Que orgulho saber que o Brasil gerou talentos do quilate de Dick Farney! Principalmente, em tempos de ídolos de papel, descartáveis, que têm a música apenas como fonte vazia de entretenimento e geradora de lucros. O nome dele, apesar de não se encontrar na Calçada da Fama de Hollywood, certamente, está eternizado na galeria dos imortais, não obstante o previsível e vergonhoso ostracismo ao qual a sua memória e a de tantas outras figuras exponenciais foram submetidas. Enquanto houver um bar, com piano de cauda e um crooner cantando baixinho uma melodia suave, à meia luz, Dick Farney viverá.


Texto por Davi Vieira

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