QUATRO DÉCADAS SEM MÁRIO REIS, O REVOLUCIONÁRIO BACHAREL DO SAMBA

 


 Quando a Casa Edison, subsidiária da gravadora Odeon, começou a operar no Brasil, no início dos anos 1900, teve início no país o processo mecânico de gravações. Como não havia microfone, os cantores precisavam ter um alto volume de voz para que conseguissem gravar os fonogramas. Era a época de Bahiano, Eduardo das Neves, Paraguassu e Mário Pinheiro. Mas, o rei da potência vocal e da popularidade foi Vicente Celestino. A qualidade do som, levando-se em conta a precariedade dos recursos e as formas rudimentares, não era das melhores. Tanto que alguns discos do período em questão são, praticamente, indecifráveis.

 A situação melhorou um pouco, no final dos anos 20, com o surgimento da gravação elétrica, já com uso do microfone (que substituiu o autofone) e uma nova aparelhagem, que possibilitava uma melhor qualidade de som. Assim, extinguiu-se a imprescindibilidade da potência vocal para gravar discos. Nesse contexto, despontou Francisco Alves - que já vinha do processo mecânico e cantava sob a influência de Celestino -, que seria “batizado” na década seguinte, por César Ladeira, como o Rei da Voz. Mas, a grande novidade do momento foi o canto comedido e sem vibrato do jovem Mário Reis, filho de uma tradicional família da aristocracia carioca (o casal Alice da Silveira, herdeira da Fábrica Bangu Tecidos e Raul Meirelles Reis, presidente do América Futebol Clube) e formado em Direito pela Universidade do Brasil (atual UFRJ, onde foi colega de turma de Ary Barroso); razão pela qual recebeu a alcunha de “Bacharel do Samba”.

 Para Jairo Severiano e Zuza Homem de Melo, duas das maiores autoridades em história da música brasileira, Mário inaugurou um novo período na história do canto popular do Brasil. O estilo diferente de se interpretar sambas, mais próximo da coloquialidade, sem muita empostação e com mais suavidade, representava um rompimento com a estética do bel-canto que predominava entre os cantores de então, os quais cantavam com vozeirão, a exemplo dos já citados Vicente Celestino e Francisco Alves. Mas, segundo Ruy Guerra, “a história de que ele cantava como se fala é menos importante. Com o surgimento das gravações elétricas, surgiram Marios Reis em todos os países. O que o diferenciava é que ele cantava com bossa. Ele incorporou a bossa ao canto popular”. De fato, ele está com a razão, pois o canto do “fino do samba” trazia uma divisão, até então, inédita, sendo o seu maior diferencial. Em suma, a sua forma de cantar foi a precursora de todas as revoluções no canto popular brasileiro dos últimos 90 anos.


 Antes da Bossa Nova surgir, tivemos o moderníssimo Orlando Silva - que apareceu em 1934, pelas mãos de Bororó e Francisco Alves -, que apesar de seguir a escola do bel-canto, trouxe dinâmicas diferenciadas em suas interpretações, usando e abusando de falsetes, pianíssimos, crescendos, diminuendos, improvisações de boca-chiusa, dosando técnica e emoção. Também tivemos os igualmente modernos Dick Farney e Lúcio Alves, a partir do final dos anos 40, que trouxeram um ar jazzístico ao samba-canção, bem próximo da inovação do baiano João Gilberto, que se concretizou em 1958. Mário, no entanto, veio antes de todos eles!

 Ele também foi um dos responsáveis pela consolidação do samba enquanto gênero musical. É importante lembrar que o samba e seus executores eram alvo de várias perseguições e vistos com maus olhos pelas elites e pelo próprio Estado, uma vez que havia a tipificação na legislação a criminalização da “vadiagem”, à qual eram, frequentemente, associados. O grande João da Baiana, no início do século passado, chegou a ser preso, portando um pandeiro, instrumento que seria a “prova” do crime, segundo contou Lira Neto, em seu livro “Uma História do Samba”, da Cia. das Letras. Sendo Mário um cantor branco, da alta sociedade e de grande popularidade, deu voz às composições de sambistas negros e da periferia, como Cartola, Heitor dos Prazeres e Ismael Silva. 

 Em sua obra, de inestimável valor, estão presentes clássicos como “Jura” (Sinhô), “Gosto que me enrosco” (Heitor dos Prazeres), “Agora é Cinza” (Bide/Marçal) - em parceria com os Diabos do Céu - e “Dorinha, meu amor” (de sua própria autoria); sem esquecer de sucessos carnavalescos até hoje lembrados, como “Uma andorinha não faz verão”, “Eva Querida” (Benedito Lacerda/Luis Vassalo) e “Jouxjoux e Balangandãs” - em duo com a socialite Maria Clara de Araújo - (Lamartine Babo). Fez duetos históricos com o próprio Chico Alves, com quem dividiu os vocais de “Se Você Jurar” (Ismael Silva), “Fita Amarela” (Noel Rosa) e outras criações que se converteriam em standards do nosso cancioneiro. Também firmou aliança com Carmen Miranda - com quem, ao lado de Chico Viola, Luperce Miranda e outros, excursionou à Argentina -, antes de sua longa estadia em Hollywood. Juntos, nos presentearam com “Alô, Alô” (André Filho, o mesmo compositor da emblemática marchinha “Cidade Maravilhosa”) e “Isto é lá com Santo Antônio” (Lamartine Babo) - igualmente clássicos da musicalidade popular nacional -, dentre outras grandes páginas.

 Inteligente, educado e com porte de galã, “o mais carioca dos cantores” - como foi chamado por Tárik de Souza -, que vivia cercado por mulheres, era avesso aos holofotes e chegou a afastar-se da carreira artística, em meados dos anos 30, em pleno auge, para dedicar-se à carreira pública, voltando aos palcos e aos discos poucas vezes. Retornou em 1951, para regravar antigos sucessos. Ainda encontrou espaço para incluir em sua discografia composições da dupla Vinícius de Moraes & Tom Jobim, além das letras de Chico Buarque, na década seguinte. No total, gravou 82 discos de 78 rotações por minuto (rpm) e 4 long-plays (lp’s).

 É impossível falarmos sobre a história de nossa música popular sem, ao menos, citarmos o nome de Mário da Silveira Meirelles Reis. Para o crítico Sérgio Cabral, trata-se do “homem que ensinou o Brasil cantar”. João Máximo o definiu como o “pai dos cantores brasileiros”. E na visão de Ruy Guerra, “qualquer um que intérprete música brasileira, está, mesmo que sem saber, seguindo Mário”. Embora, injustamente, esquecido, sua contribuição está diretamente arraigada ao solo musical brasileiro. Em cada cantor, há um pedaço seu. Em cada voz, a sua está presente. Seu nome estará sempre gravado nas entranhas do canto popular moderno. Viva Mário Reis!


Texto por Davi Vieira

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