A MULHER DO FIM DO MUNDO SERÁ ETERNA E CANTOU ATÉ O FIM
No início dos anos 50, uma jovem pobre e negra subiu ao o palco do show de calouros de Ary Barroso. Subestimada pela sua aparência e condição social, a moça que, àquela altura, já era mãe e viúva, e precisava trabalhar para sustentar seus filhos, foi humilhada. O compositor de “Aquarela do Brasil” perguntou-lhe: “De que planeta você veio?”; ao passo que ela respondeu-lhe: “Do mesmo planeta que o seu, o planeta Fome!”. Após dizer isso, toda a plateia entusiasmada que ria dela, deliberadamente, calou-se, para ouvi-la cantar. A música escolhida foi “Lama”. Ao fim do número, a então caloura foi ovacionada e apontada como “nova estrela da música”.
De fato, Elza da Conceição Soares, que nos deixou hoje, neste dia de Oxóssi, aos 91 anos, foi uma estrela! Na verdade, uma das grandes estrelas da música brasileira! Melhor ainda, uma constelação! Da Vila Vintém para o mundo, ela mostrou a força da mulher negra brasileira, com todas as suas venturas e desventuras, através de seu canto forte e expressivo, vindo de sua voz rouca e cheia de personalidade. Isso, sem falar de sua tremenda e assombrosa musicalidade, que a permitia cantar tudo aquilo quisesse, e sem perder a identidade. Do sambalanço - gênero no qual fez uma inesquecível parceria com Miltinho - ao jazz, da bossa nova ao hip hop, a “mulher do fim do mundo” deu o seu recado a milhões de ouvintes Brasil afora.
Considerada uma das melhores intérpretes de Lupicínio Rodrigues - a quem dedicou um álbum inteiro, “Elza canta e chora Lupi”, de 2013 -, coube a ela eternizar o clássico “Se Acaso Você Chegasse” (seu primeiro sucesso). Outros grandes êxitos, a exemplo de “Boato”, “Beija-me”, “Mulata Assanhada”, “Eu Sou a Outra” e “Boato”, acompanharam sua bela e longínqua trajetória artística, que sempre prezou pela reinvenção e inovação. Prova disso são os seus mais recentes trabalhos, “Mulher do Fim do Mundo” (2015) e “Deus é Mulher” (2020), nos quais exaltou o poder feminino e levantou a voz contra o machismo e suas mazelas na sociedade, renovando o seu público e levando seu legado, também, às novas gerações. Porém, a militância e o enfrentamento de qualquer desafio sempre fizeram parte de sua vida, não apenas como cantora, mas como mulher, e mulher empoderada!
Símbolo de resistência, a “cantora do milênio” - título que recebeu após votação de enquete da BBC de Londres - foi uma mulher vitoriosa em todos os sentidos. Superou desde uma infância difícil, marcada por discriminação racial e, até, violência sexual à relacionamento tóxico, repleto de agressões físicas e verbais. Seu casamento com o craque Mané Garrincha (coincidentemente, falecido em 20 de janeiro de 1983) foi bastante conturbado e deixou marcas profundas em ambos. Pesaram ainda as inumeráveis perdas de seus filhos, alguns deles recém-nascidos, na adolescência. A própria morte de Garrincha também foi devastadora. No entanto, nada isso foi capaz de ofuscar o seu brilho, nem abafar o seu grito!
Sem sombra de dúvidas, sua coragem e força abriram portas para gerações de artistas e mulheres, sobretudo negras e da periferia, a lutarem por seus objetivos e não abaixarem suas cabeças diante das dificuldades da existência. Não à toa, pessoas como Zezé Motta, Preta Gil, Cacau Protásio e, inclusive, Beyoncé, a citam como referência, não apenas artisticamente, mas na vida. Elza é parte da história deste país, que ainda precisa melhorar, e muito, em termos de justiça social. E certamente, também é parte de muitas das conquistas alcançadas nesse sentido; seja através de sua arte, ativismo ou do seu próprio testemunho.
Com Elza, vai-se um pouco da beleza e da glória de nosso povo, mas ela deixou um legado que suprirá essa perda. Seu nome será eternamente lembrado e viverá para sempre guardado na alma de cada brasileiro e de todos que conheceram seu talento e vida ao redor do planeta. Elza Soares foi muito mais que uma cantora, artista ou mulher empoderada, mas uma escola que sempre formará discípulos de geração a geração. A dor de sua perda é inevitável, mas a certeza de que ela jamais morrerá deve ser maior ainda! Elza vive em cada Maria da Vila Matilde, que disca o 180 e denuncia que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. Elza vive cada um de nós, que aplaudimos a sua digna e inesquecível existência, agradecendo por tudo o que fez e deixou no mundo!
Texto por Davi Vieira
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